quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Nem padre nem doutor

Passaram anos sobre o dia em que fui desterrado para um primeiro andar de uma casa sita na rua Dr. João Jacinto, em Coimbra, com a finalidade de chegar a doutor se para tal houvesse sabedoria.
A nobreza da intenção possivelmente foi abençoada pelo arcipreste Januário, pastor das almas da freguesia; porém, nem ele nem a minha família tiveram o cuidado de conhecer os meus anseios, coisa pouca, devo acrescentar: queria ser padre para entoar a imperceptível ladainha da missa ao domingo e usar uma “saia” negra como o prior.
Cá por casa tiraram-me daí o sentido com o argumento de que os padres não podiam casar e então, para não ter de inventar sobrinhas ou primas afastadas, o melhor era ser doutor de qualquer coisa e depois se veria com quem partilhar o aconchego da família oficial que havia de ter…
Coimbra e o Liceu D. João III seriam, pois, o destino da criança que eu era. E lá fui, com medos e vergonhas a fazerem mossa na imatura e periclitante personalidade. Fui, mas regressei no fim do ano letivo, vergado a um chumbo de dois “noves”, escrito a vermelho na pauta.
No ano seguinte, havia duas opções: o colégio de Oliveira, afamado, ou o de Arganil, que não lhe ficava atrás nos resultados académicos. Escolheram por mim: Arganil –sempre havia carreira de manhã e à tarde, e ficava sob a alçada da família, que continuava a insistir no “doutor de qualquer coisa” - padre é que nem pensar!
As voltas que dei na vida afastaram-me, definitivamente, de todas as vontades e desejos.
Mais tarde, os ares de Abril trouxeram-me de regresso “à terra”, deixando para trás, contrariado, um pedaço de África, como se tivesse arrancado à força o sonho de…ser doutor – ou padre! - e voltei a Oliveira do Hospital a tempo de conhecer gente que, se a roda da fortuna tivesse girado noutro sentido, bem poderiam ter sido meus condiscípulos no Colégio Brás Garcia de Mascarenhas. Agora ouço relatos de peripécias inarráveis em letra de forma, conheço estórias de sucesso, e sei da saudade com que alguns desses amigos recordam os tempos do “Brás”.
Tarde no tempo, continuo assim, “ nem padre nem doutor” de qualquer coisa – continuo aprendiz pela “leitura do conhecimento” de mestres como Fernando Vale ou João Soares ( de Oliveira de Hospital, não o “outro”…).






Croniqueta publicada em 2008, agora adaptada, Fernando Vale e João Soares, os "mestres",  infelizmente, partiram para o "oriente eterno".



https://youtu.be/iiKJmBgAfFE

2 comentários:

  1. Complimenti Amigo e Mestre Carlos, nem padre nem doutor!
    Adorei a sua " croniqueta"! Uma escrita acutilante mas agradável... retratando com elevado sentido de humor uma época em que as vontades (incluindo a do legitimo titular!) pertenciam a outros... Era a vida!
    Forte e sentido abraço.

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  2. Gostei de ler esta estória, igual a tantas que conheço. Foi, é e sempre será assim, os progenitores ensinam-nos o caminho, mostram-nos a direção e até nos dizem o que será melhor para os rebentos, mas as escolhas são sempre, mas sempre dos rebentos :)

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