quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

O pintainho amarelo

“(…)
- Como é que voltas a pôr o ovo lá dentro - disse ela - para o fazeres  sair outra vez? No teu sonho, claro.
 - Não sei, volta a entrar… lá para dentro, e pronto. Suponho eu.
O riso de Lydia é agora um disfarce.
- E que diria o Doutor Freud de uma coisa assim?
 Suspirei de irritação.
 - Nem tudo é….
 Suspiro
- Nem tudo
(…)
- Oh, claro - disse ela - às vezes um pintainho é só um pintainho, a não ser que seja uma galinha (…)”.

Quando a Ângela decidiu lembrar “a amizade, a alegria, o riso, as conversas”, fez agora anos, e presentear o meu aniversário com o “mais belo e melancólico romance de John  Banville”, segundo a opinião do crítico do Sunday Telegraph, não lhe passava pela cabeça que este “Eclipse”- título da capa - dizia de mim o incómodo de alguns dos (meus) segredos,  agora assumidos, que o tempo é de arrumar memórias.
Parágrafo a parágrafo, página a página, tomei assento na estória até dela fazer parte, como se fosse o autor dos “fantasmas” silenciosos que sempre me perseguiram, como sucedeu a Alex Cleave. Este “Eclipse”, na imaginação de John Banville, irlandês, nascido no ano em que eu nasci, tem tanto de mim que dá arrepios – li páginas inteiras “sobre mim”, voltei a ler, pausei a leitura, repeti parágrafos, páginas inteiras - era eu, sou eu “aquilo”, espécie de retrato dos meus medos – de um pequeno medo que fosse: ai se a memória me falha, como aconteceu a Alex Cleave, o ator, a quem aconteceu o vazio da fala à boca do proscénio. Essa foi a causa que o levou de regresso à casa onde nasceu para viver com os “fantasmas que habitavam o mesmo espaço”…

Alex Cleave teve (…) um pintainho amarelo, de celuloide, especado nas  suas patas muito finas  e que punha um ovo quando lhe  premiamos o dorso (…). Lydia estava a olhar para mim com um sorriso incómodo e desdenhoso, mas não inteiramente isento de ternura.
- E como é que se põe lá dentro? - perguntou-me.
- Lá dentro?

Nas minhas memórias de menino há um pintainho amarelo, que punha um ovo quando se premia o dorso.
Coincidência, caro Alex Cleave, aliás: "eu"!



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